O desafio dos abusos sexuais. O que o Papa fez após o Encontro de fevereiro de 2019. Em preparação à Conferência de Varsóvia
No mundo de hoje a Igreja tem de enfrentar grandes desafios. O mais fundamental é o da fé e do anúncio de Deus e Jesus Cristo no mundo de hoje, com suas enormes transformações culturais e antropológicas. No entanto, existem também desafios específicos, que influenciam muito profundamente na vida da Igreja e na sua missão evangelizadora. Uma das mais críticas nas últimas décadas, porque feriu a credibilidade da Igreja e, portanto, a sua autoridade e capacidade de anunciar o Evangelho de forma credível, é a dos abusos sexuais contra menores por membros do clero. Isso lançou uma sombra de incoerência e falta de sinceridade sobre a instituição da Igreja, sobre a comunidade da Igreja como um todo. Isso é realmente muito grave.
Com o tempo e a experiência, aprendemos a partir dos abusos sexuais contra menores – que são os mais graves -, a ampliar a perspectiva sob diversos aspectos, de modo que hoje falamos com mais frequência dos abusos em relação às pessoas “vulneráveis” e sabemos que eles são vistos como abusos não sexuais, mas também de poder e de consciência, como o Papa Francisco insistiu muitas vezes. Além disso, é necessário recordar que o problema dos abusos, nas suas várias dimensões, é um problema geral da sociedade humana, nos países em que vivemos e nos vários continentes, e não se trata de problemas exclusivos da Igreja Católica. Pelo contrário: quem estuda de forma objetiva e ampla vê que existem regiões, lugares e instituições muito diferentes onde a questão é dramaticamente difundida.
Ao mesmo tempo, é justo que nos interroguemos especificamente sobre o problema da Igreja, pela razão – como já foi referido – da sua credibilidade e da sua coerência. A Igreja sempre insistiu muito em seus ensinamentos sobre o comportamento sexual e o respeito pela pessoa. Portanto, mesmo se virmos que não é um problema exclusivo da Igreja, devemos levá-lo absolutamente a sério e entender que tem uma gravidade terrível no contexto da vida eclesial e do anúncio do Evangelho do Senhor.
Em particular, é um campo em que está em jogo a profundidade e a verdade da relação com as pessoas, a serem profundamente respeitadas na sua dignidade. Como cristãos e católicos, orgulhamo-nos de reconhecer na dignidade da pessoa um papel fundamental, porque a pessoa é imagem de Deus. Ora, o fato de abusar dela, de faltar com o respeito, de considerar os outros como objetos, de não estar atentos a seus sofrimentos e assim por diante, é um sinal de uma falta justamente em um ponto fundamental de nossa fé e de nossa visão de mundo.
Na recente reforma do direito penal canônico, há um aspecto que pode parecer puramente formal, mas invés disso é muito significativo desse ponto de vista. Os delitos de abuso estão inseridos no campo dos delitos “contra a vida, a dignidade e a liberdade da pessoa”. Não são “coisas vergonhosas” ou “indignas do clero”, mas é sublinhado que na perspectiva da Igreja a dignidade da pessoa deve estar no centro e ser respeitada porque e como imagem de Deus. Isso é absolutamente fundamental. O fato de converter-nos para levar muito mais a sério a escuta e o respeito de cada pessoa, mesmo se pequena ou fraca, é um dos pontos importantes do caminho de conversão e purificação da Igreja no nosso tempo para ser credível.
O encontro de 2019: responsabilidade, prestação de contas, transparência
Sem ter que refazer toda a história dos dramáticos acontecimentos e das posições da Igreja sobre os abusos sexuais, podemos, para simplificar, fazer referência à “Cúpula” de fevereiro de 2019. Foi convocada pelo Papa como um momento global, no qual toda a Igreja, por meio dos representantes de todas as Conferências Episcopais, das congregações religiosas masculinas e femininas, se encontrasse para um momento de tomada de consciência e de compromisso, para continuar o caminho de renovação com mais eficácia.
A organização daquele encontro (cujas atas foram publicadas no livro Conscientização e purificação, da LEV) girou em torno de três pontos principais.
Antes de tudo, a consciência e a responsabilidade do problema, das questões relacionadas com os abusos sexuais de menores e não só; a importância de ouvir e entender profundamente, com compaixão e participação, as consequências, o sofrimento, a gravidade do que aconteceu e acontece neste campo. Portanto: a escuta e a compaixão como ponto de partida da atitude a ser assumida. Depois, naturalmente, a necessidade de fazer justiça em relação ao que foi praticado de criminoso e prejudicial em relação aos outros. Portanto, preparar-se para prevenir, de tal modo que esses crimes não voltem a acontecer – ou, pelo menos, aconteçam cada vez mais raramente – e que haja um controle sobre essa realidade tão dramática. Isto implica a formação de todos no âmbito da comunidade eclesial e também especificamente de pessoas competentes, para que possam agir e ser referência no enfrentamento do problema. Resumindo: a consciência e a responsabilidade em enfrentar juntos a questão.
Outro ponto muito importante e crucial é o de “prestar contas” (em inglês falamos muito sobre accountability/responsabilização ética) e superar a cultura do encobrir ou do ocultar. Um dos aspectos dramáticos desta crise é que vieram à tona, ao conhecimento público, realidades gravíssimas que – mesmo se por vezes se soubesse que aconteciam – eram sistematicamente (e muitas vezes com uma atitude quase “natural”) mantidas na sombra ou encobertas, por vergonha ou para defender a honra das famílias ou das instituições envolvidas, e assim por diante. Disto a necessidade de superar a atitude de esconder e, em vez disso, responsabilizar pelo que foi feito, mesmo por parte dos responsáveis. Uma vez que esta realidade de ocultação era difundida de certa forma em todos os níveis, mas também mais gravemente ao nível dos responsáveis - superiores de comunidades, bispos e assim por diante – o fato de trazer à luz e fazer com que todos prestem contas por suas ações e, portanto, exista uma segurança de ir em direção a uma situação de clareza, de responsabilidade e de justiça, é mais um dos passos absolutamente necessários.
E depois, e é o terceiro ponto do qual muito se falava no encontro, a “transparência” é uma consequência do que dissemos. Ela não quer dizer somente saber que houve e que existem delitos, falar sobre eles e dar ênfase a eles. Certamente, reconhecer a verdade dos fatos é essencial, mas a transparência também quer dizer saber e dar a conhecer o que se faz para responder, quais são os procedimentos com os quais a Igreja em todas as suas dimensões enfrenta essas situações, quais são as medidas que toma, quais são as conclusões dos julgamentos contra os culpados, e assim por diante. Desse modo, também a comunidade eclesial e civil se torna consciente de que não somente foram vistos os pecados e os crimes, mas que existe todo um caminho no qual a comunidade está conscientemente envolvida e com o qual responde a esses problemas.
Os passos importantes dados após o Encontro de 2019
Mas se o Encontro de 2019 deveria ser um ponto de partida comum, é preciso reconhecer que depois dele efetivamente foram dados muitos passos, que cumpriram todos os principais compromissos assumidos em 2019 pelo Papa e pelo governo central da Igreja. A que estamos nos referindo?
Antes de tudo, já no final de março de 2019 foram promulgadas as novas leis e diretrizes em relação ao Vaticano e à Santa Sé, estendendo a abordagem, além do abuso de menores, às “pessoas vulneráveis”. Depois, em 9 de maio de 2019, foi promulgada uma nova lei importantíssima para toda a Igreja, o Motu proprio Vos estis lux mundi – “Vós sois a luz do mundo” -, na qual o Papa ordenou que em todas as dioceses fossem organizados escritórios para receber denúncias e para iniciar os procedimentos para responder aos abusos. E não só: mas estabeleceu para todos os sacerdotes e religiosas a obrigação de denunciar os abusos de que venham a ter conhecimento, e também convidou os membros leigos da Igreja a denunciá-los. Agora, todos os sacerdotes e religiosas têm a obrigação de consciência de denunciar os casos de abuso de menores de que tenham notícia, e não só aqueles contra menores, os mais graves, mas também aqueles contra outras pessoas vulneráveis ou outros abusos cometidos com violência. E os leigos também são convidados a fazê-lo, e devem saber o lugar preciso onde podem apresentar a denúncia. Este é um passo muito decisivo. Naturalmente, é preciso verificar se foi plenamente colocado em prática, mas já é lei para toda a Igreja. É um passo absolutamente fundamental dado pelo Papa, provavelmente o mais importante neste campo ao longo de quase vinte anos. E não só: na mesma lei é estabelecido o procedimento relativo às denúncias dos superiores hierárquicos – superiores gerais religiosos, bispos, cardeais … – não só por abusos, mas também por casos de “encobrimento”. Portanto, os temas da responsabilidade e do prestar contas foram enfrentados radicalmente.
Além disso, em dezembro de 2019 foi abolido o “segredo pontifício” sobre atos relativos a questões de abusos sexuais, o que permite também a colaboração com as autoridades civis, de forma mais clara e livre do que antes. Portanto, mais “transparência”. Depois, em julho de 2020, foi elaborado e publicado o famoso Vademecum, que havia sido muito solicitado e indicado pelo próprio Papa como um dos primeiros objetivos do Encontro de 2019. Ele foi redigido pela Congregação para a Doutrina da Fé: um belo documento, muito rico, que não traz grandes novidades, mas coloca bem em ordem e explica com clareza, para uso de cada bispo e de cada responsável, todos os pontos que deve saber e o que deve fazer nas diferentes situações. Um instrumento que era realmente necessário. Quando saiu não se falou muito, porém era um dos pontos essenciais nos pedidos do Encontro de 2019, e foi realizado.
Mais recentemente, no Pentecostes deste ano de 2021, foi publicado o novo Livro VI do Código de Direito Canônico, que contém um pouco todo o direito penal da Igreja, reformulado e organizado, de modo que as novas normas, que no decorrer do anos haviam sido estabelecidas no campo dos abusos como em outros campos, agora são recolhidas no Código de Direito Canônico de forma ordenada, enquanto antes ficavam “dispersas” em toda uma série de intervenções e documentos.
Agora – insistimos – pode-se afirmar que essas coisas são exatamente as principais que se devia esperar do e da Santa Sé após o encontro de 2019. E foram feitas.
Pode-se acrescentar que neste mesmo período, em novembro de 2020, também foi publicado o volumoso “Relatório McCarrick”, depois que, por desejo do Papa, haviam sido estudados detalhadamente todos os fatos envolvendo o gravíssimo escândalo que abalou a Igreja dos Estados Unidos e toda a Igreja: como foi possível que um culpado de abusos tenha chegado ao topo das responsabilidades eclesiásticas, como arcebispo de Washington e cardeal. Também essa publicação pode ser considerada um passo doloroso, mas muito corajoso em direção à transparência e à vontade de prestar contas dos crimes e das responsabilidades, mesmo nos mais altos escalões da Igreja.
Portanto, estamos diante de um problema enorme, difícil e doloroso, que diz respeito à credibilidade da Igreja. Porém não é verdade que nada foi feito ou que nada ou pouco esteja sendo feito. Pode-se e deve-se tranquilamente dizer, com clareza, que a Igreja universal enfrentou e enfrenta este problema, deu os passos necessários e estabeleceu normas, procedimentos e regras para enfrentá-lo corretamente.
O caminho que temos pela frente: das normas à prática
Isso, claro, não quer dizer que tudo esteja feito, porque, como se sabe, uma coisa é estabelecer as normas, o quadro de referência, outra coisa é mudar a realidade colocando-as em prática. A próxima Conferência das Igrejas da Europa Central e Oriental, em Varsóvia, em setembro, sobre a proteção de menores e pessoas vulneráveis, insere-se exatamente nesta direção. De fato, em cada espaço geográfico e eclesial, que tem aspectos e problemáticas comuns do ponto de vista histórico e cultural, é necessário refletir sobre o ponto em que se encontra e sobre quais são os caminhos concretos para traduzir eficazmente na realidade as orientações da Igreja universal. Em outras regiões já foi feito: por exemplo, houve um grande encontro na América Latina, no México, há cerca de um ano. Depois, a pandemia interrompeu muitos programas e provocou atrasos. Porém, em diversos continentes e regiões se está fazendo – ou já foi feito – aquilo que agora está programado para a Europa Centro-Oriental. Trata-se, portanto, de um passo fundamental de um caminho comum da Igreja universal que diz respeito, com a sua especificidade, a esta área geográfica, cultural e eclesial.
Para concluir. Muito tem sido feito, ao nível dos normativas gerais e também ao nível das experiências concretas. Em algumas partes mais, em outras partes menos. Encontrar-se é necessário para fazer circular o conhecimento e compreender formas concretas e eficazes de enfrentar os problemas. Estamos a caminho e permaneceremos em caminho, mas por uma estrada que em essência é suficientemente clara, na qual é necessário avançar com rapidez e sem incertezas, para curar os sofrimentos, fazer justiça, prevenir os abusos, restaurar a confiança e a credibilidade da comunidade da Igreja, dentro dela e na sua missão para o bem do mundo.
Federico Lombardi S.I.
Fonte: Vaticannews