Em 2020, vivemos com grande alegria o 100º aniversário da entrada das mulheres no Movimento de Schoenstatt. Foi um tempo marcado pela reflexão sobre o tema do ser e da missão da mulher, a partir de diferentes perspectivas: histórica, espiritual, teológica, social, cultural, etc. Estes aspectos nos iluminaram muito, mas também nos geraram perguntas: os temas apresentados pelo Pe. Kentenich no século passado ainda são válidos? Como podemos viver o ideal da mulher no tempo presente? Que desafios enfrentamos?
Desafios de hoje e sempre
Em primeiro lugar, temos que distinguir que há desafios permanentes, de todos os tempos e culturas, relacionados com a essência atemporal do ser feminino (ordem do ser), e existem outros que respondem a perguntas, necessidades e desejos de um tempo determinado.
O tempo atual, como nunca antes, se questiona sobre a mulher e, de certa forma, se encontra diante de um mistério: O que significa ser mulher? Qual a sua contribuição? O tema sobre a mulher se tornou, em alguns casos, uma bandeira. As mulheres de hoje não querem passar despercebidas e exigem que sejam consideradas. Os pontos de vista tradicionais das mulheres são rejeitados. Os movimentos feministas, embora muito diversos, buscam sensibilizar, reivindicar…
Foto: Joel-Muniz-HvZDCuRnSaY-unsplash
Mulher, imagem de Deus. A ressignificação da imagem de Deus.
Segundo o Pe. Kentenich, o que constitui a raiz do ser feminino é sua atitude filial, que longe de representar uma imagem fraca, passiva, submissa e dependente, refere-se à grandeza e força de quem enraíza livremente sua vida na condução amorosa daquele que governa o destino do mundo (Deus). Uma mulher é plenamente mulher quando pode se realizar como filha, algo que a remete a última instância, a Deus.
A mulher é entendida a partir de Deus e Deus é entendido a partir da mulher. O Evangelho de Jesus Cristo, cujo centro é a revelação do Pai, torna-se mais compreensível e vital pelo ser da mulher, em cujos “genes espirituais” se inscreve a filialidade como atitude fundamental de vida: ser mulher é ser filha e conduzir os outros ao Pai (maternidade).
A filialidade, entretanto, é um processo dinâmico; ou seja, somos filhas, mas ao mesmo tempo estamos em um caminho de “filialização”. O ideal é nos assemelharmos cada vez mais ao Filho, ter os mesmos sentimentos que Ele (Fil 2,5). Portanto, para viver o ideal de filialidade, é importante repensar nossa imagem de Deus. Se acreditamos em um Deus que só recompensa os sucessos humanos, que proíbe e condena, ou que é um ser distante, tão transcendente quanto inatingível, então será difícil para nós entender a autêntica atitude filial que atrai o poder misericordioso do amor, reconhecendo e aceitando nossos próprios limites.
(Auto) Reconhecimento da dignidade da mulher: não há necessidade de se encaixar em estereótipos
Qual é o desafio que a filialidade apresenta às mulheres hoje em dia? É apenas uma etapa de um processo rumo ao crescimento e à independência? Pode abranger todas as etapas da vida?
O Pe. Kentenich afirma que o maior grau de realização ao qual podemos aspirar é a filialidade plena, madura, que consiste no reconhecimento da dignidade da mulher, das próprias fraquezas e da dependência e da confiança na entrega confiante a Deus em todas as circunstâncias. É um sim total a Deus, ao que quer que Ele queira nos dar. É um processo para toda a vida, o caminho que Maria fez.
A busca do reconhecimento do valor e da dignidade da mulher tem sido um desafio de todos os tempos, embora muitas vezes tenha sido uma busca de aceitação e reconhecimento externo. Neste sentido, talvez um dos maiores desafios para as mulheres de hoje não seja apenas que outros, sejam homens ou sociedade, as reconheçam (em sua originalidade, direitos, etc.), mas que elas próprias se conheçam, se aceitem e valorizem a si mesmas.
A mulher precisa da certeza de saber que é amada por um tu que não coloca condições para que ela ser digna deste amor. O amor e a escolha de Deus Pai são a fonte original da dignidade filial e não os próprios méritos ou ações humanas.
Portanto, a filialidade, o reconhecer-se como uma filha amada do Pai, dá à pessoa uma liberdade profunda que permite que a mulher seja autêntica e original sem tentar se encaixar nos moldes propostos pela moda do momento que massifica e despersonaliza.
Reconhecimento de sua pequenez diante de Deus: Deus nos ama, não “apesar de”
Um dos grandes desafios diante de uma sociedade que gera em nós a necessidade de ter sucesso em tudo o que fazemos e empreendemos é o reconhecimento de nossas limitações, nossos fracassos e nossa pequenez. O Padre Kentenich leva muito a sério este assunto, afirmando que “minha miséria, a miséria reconhecida, reconhecida com confiança, é o maior título que nos dá o direito ao amor misericordioso do Pai”.[1] Nesta perspectiva, as fraquezas e limitações conhecidas e reconhecidas, por um lado nos levam a Deus e por outro nos abrem para receber sua misericórdia e deixá-lo agir em nossas vidas.
Podemos ver nestes tempos que as mulheres enfrentam uma luta constante com elas mesmas. Por um lado, ela tem grandes ideais, por outro, limitações que a desencorajam em seu anseio pelo grande, o alto. E como o Papa Francisco afirma na carta apostólica Patris corde: “Muitas vezes pensamos que Deus depende apenas da parte boa e conquistadora de nós, quando na realidade a maioria de seus desígnios são realizados através e apesar de nossa fraqueza”. O Pe. Kentenich acrescentaria, não apesar da nossa fraqueza, mas precisamente por causa dela. É através de nossa pequenez que se mostram mais claramente a grandeza e ação de Deus em nossas vidas e nossa realidade como instrumentos em Suas mãos. Reconhecer nossas limitações não nos torna fracos, mas fortes, assim como São Paulo que se glorificou em suas fraquezas (2 Cor 12:9).
Reconhecimento de sua missão
Após conhecer e aceitar a si mesma, tanto em sua pequenez quanto em sua verdadeira dignidade, a mulher tem o grande desafio de descobrir sua missão pessoal e comunitária no mundo. Ela foi criada para algo de grande! Ser alma, para infundir vida na sociedade e na cultura.
Ao longo dos tempos, a humanidade das mulheres tem sido destacada, porque elas têm uma sensibilidade especial para compreender os limites da condição humana, a realidade concreta e as situações individuais (dor, carência, anseios pessoais,…) Em uma cultura marcada pelo sucesso, produtividade, desempenho, o valor feminino é um alerta contra os excessos e implica uma correção social, cultural, econômica, sob pena de nos desumanizar. A mulher representa um plus de humanidade indispensável para assumir os limites do progresso e um maior realismo existencial.
Nesta perspectiva, o Papa Francisco expressa que “é necessário ampliar os espaços para uma presença feminina mais incisiva” (19/08/2013), poderíamos dizer mais mariana, mais vivencial, mais orgânica.
A sociedade precisa de mulheres “fortes e dignas, simples e bondosas, espalhando amor, paz e alegria” (Rumo ao Céu, Hino do Instrumento, 609). Neste sentido, podemos considerar o desafio da necessidade de nos entregarmos a um tu através do serviço. O serviço é frequentemente visto como uma forma de escravidão, quando é bem o contrário: uma forma de autodomínio e liberdade à imagem de Cristo (Jo 10,18; Mt 20,28). O serviço é a expressão da compreensão do Evangelho e da entrega filial de Jesus e Maria.
[1] Em: La mirada misericordiosa del Padre. Textos escogidos del P. José Kentenich, ed. Mons. Peter Wolf, Santiago de Chile 2015, págs. 223-224
Vai se construindo, vai amadurecendo, fundamentalmente no relacionamento
A identidade feminina, por outro lado, não é formada, não amadurece, apenas e em primeiro lugar a partir da reflexão, mas a partir de experiências e apegos pessoais nos quais seu próprio ser é revelado e confirmado. A mulher, assim como o homem, se vai construindo, amadurecendo fundamentalmente no relacionamento (cultura). Nas relações autenticamente pessoais, a mulher encontra o sentido de sua vida, ela interpreta seus anseios ocultos. A ausência de vínculos profundos e saudáveis faz com que ela vacile com relação à sua identidade até que, finalmente, ela é incapaz de responder ao seu próprio ser.
Das mãos de Maria
Neste panorama de busca, de discernimento vital, de autodefinição da mulher, a resposta à questão da identidade feminina só pode vir da própria vida, de pessoas concretas que representam, encarnam e irradiam plenitude de vida como mulher; ou seja, mulheres que servem de referência imediata para outras mulheres, nas quais as aspirações de muitas outras estão condensadas.
No nível sobrenatural, a referência do modelo por excelência é Maria. Ela pode ser a inspiração espiritual de atitudes que são então refletidas em formas de vida plena em pessoas concretas. Ela é a filha fiel do Pai e a companheira e colaboradora de toda a obra de Jesus. Ela nos ensina o caminho da filialidade, da dependência, da serviçalidade e da entrega total. Em outras palavras, o desafio atual da mulher passa pela santidade referencial que torna seu mundo interior visível, compreensível e eficaz (de uma forma intuitiva). Quando uma mulher encontra tal modelo, seu coração não leva muito tempo para se iluminar e para viver nesse mesmo mundo espiritual.
Uma grande oportunidade é um grande desafio
O tempo presente se apresenta à mulher de hoje como uma grande oportunidade. Está cheio de desafios. Ela não pode continuar vivendo como até agora, mas deve intervir mais decididamente na vida pública, social, cultural, produtiva, etc., especialmente mostrando com mais determinação e ousadia seus desejos, suas ideias, seus projetos que serão uma irradiação de seu ser e de seu ideal. Ela deve impregnar de vida todas as suas áreas, de acordo com sua profissão, sua vocação e seu estado de vida.
A experiência de uma profunda filialidade permitirá à mulher a autenticidade que ela deseja, a liberdade que ela exige, a certeza interior do coração de saber que ela é amada e aceita como ela é. É o caminho de uma infância espiritual madura, um caminho que somos chamados a viver e a transmitir com nosso ser.