Quando chega a Quaresma, habitualmente buscamos formas de jejum e de sacrifício. Para muitos católicos da atualidade, esse período é caracterizado pela desconexão digital: menos tempo em Instagram, Facebook, Whatsapp, TikTok… e tantos outros meios que sugam tempo e energia.
A brasileira Mayra Montoya Petry, da Liga de Famílias de Schoenstatt, conta: “Não é o primeiro ano que faço essa prática. Foi uma experiência interessante, pois, ao reduzir o tempo das redes sociais, percebemos o quanto somos reféns da tecnologia. E viver o real certamente é muito melhor que o virtual. Vale a pena se conectar consigo mesmo para, somente depois, se reconectar”.
A experiência desafiadora chegará ao fim muito em breve, com a Páscoa. Mas, o que fica de aprendizado com isso? Como manter uma rotina de autoeducação e alcançar ainda mais benefícios?
Como forma de contribuição, o espanhol José Luis Serrano, Professor Titular de Tecnologia Educativa na Universidade de Murcia, Espanha, partilha seu recente artigo:
Tecnologia sim ou tecnologia não? Essa é a grande questão
Em nosso dia a dia, e muitas vezes por meio de nossos dispositivos móveis, recebemos uma enxurrada de mensagens que contribuem para uma visão polarizada sobre a tecnologia. Por um lado, alguns estudos alertam sobre seus efeitos negativos, como depressão, ansiedade, estresse, exaustão emocional, estilos de vida sedentários e pior qualidade do sono. Mas, ao mesmo tempo, outros reconhecem sua importância para a comunicação, a construção de relacionamentos, a autoexpressão, o gerenciamento de informações, o ensino e o aprendizado. No entanto, eles também reconhecem que, até o momento, a influência real das telas sobre a saúde ou a educação ainda é desconhecida.
Tanto a Internet quanto as mídias sociais (e os dispositivos que usamos para acessá-las) podem ser saudáveis ou não, dependendo de como as usamos. Exemplos dos fatores negativos são o “zombie scrolling” (ir deslizando a tela com pouca ou nenhuma consciência daquilo que vemos), a preguiça cibernética, a multitarefa e as interrupções constantes. Por isso, quando usamos esses dispositivos, convém fazer pausas frequentes, incorporar momentos de atividade física e controlar o tempo que passamos em frente às telas.
Um conceito relativamente novo que surgiu na esteira desses problemas é o detox digital, uma estratégia que nasceu com a promessa de fazer desaparecer os efeitos do seu uso excessivo.
O mito do ‘detox’ digital
O detox digital consiste em uma pausa voluntária no uso da tecnologia. Ela pode durar 24 horas ou uma semana e tem como propósito reduzir o tempo de conexão e, com isso, o estresse, a ansiedade, a depressão, o vício ou a sobrecarga cognitiva que o uso contínuo de um celular, tablet ou computador pode estar causando.
Um estudo recente com 850 participantes alemães (entre 18 e 65 anos) não concluiu que o uso do celular de forma mais contínua ou intermitente tenha impacto sobre o bem-estar mental. Em vez disso, variáveis como tipo de atividade, hora do dia e traços de personalidade, como extroversão ou introversão, desempenham um papel mais significativo, de acordo com outra pesquisa.
Uma revisão sistemática concluiu que uma desconexão pontual não está diretamente relacionada ao bem-estar, ao autocontrole ou à saúde geral.
24 horas sem conexão para tomar consciência
Afastar-se de maneira drástica da tecnologia com restrições e sem mudar hábitos não trará mudanças efetivas. Podemos fugir temporariamente do mundo digital, mas nossos hábitos ainda estarão esperando por nós.
Por outro lado, as desconexões ocasionais podem ser úteis para iniciarmos processos de reflexão e tomarmos consciência do uso que fazemos da tecnologia. Essa conclusão foi obtida em um dos primeiros estudos sobre desconexão digital publicado em 2012. Ele envolveu 1.000 estudantes universitários de dez países diferentes e eles tentaram passar 24 horas sem meios tecnológicos.
Em 2017, replicamos o estudo anterior. Até o momento, 539 alunos da Universidade de Murcia tentaram passar 24 horas desconectados da TV, do tablet, do computador e do celular. Apenas um terço conseguiu, mas o mais importante foi o autoconhecimento adquirido.
Os alunos se conscientizaram sobre o uso abusivo da tecnologia. Também da influência dos meios digitais em suas rotinas diárias. Eles notaram sua dependência da tecnologia, uma melhora na concentração e uma diminuição nas interrupções durante o período de desconexão.
No entanto, eles tiveram dificuldades para realizar tarefas acadêmicas ou se comunicar com outras pessoas. Alguns alunos relataram que se sentiram isolados e ansiosos devido à falta de informações.
Assumir o controle
Se realmente queremos desfrutar do mundo digital, uma desconexão ocasional nos ajudará a tomar consciência de nosso uso da tecnologia. Mas se realmente quisermos ser eficazes, é pertinente estarmos atentos e agirmos criando uma rede de hábitos duradouros que modifiquem nossos comportamentos em ambientes digitais.
Precisamos considerar como nossa vida diária, marcada pelo estresse, isolamento social, sedentarismo ou falta de sono, diminui nossa capacidade de autocontrole. Isso faz com que fiquemos menos atentos e tomemos decisões menos acertadas.
Temos a tendência de culpar os algoritmos das mídias sociais por prenderem nossa atenção. No entanto, recentemente foi demonstrado que são as interrupções internas das pessoas que causam distrações.
Compromisso do usuário
Segundo a neurocientista Nazaret Castellanos, “80% das distrações que nos atrapalham surgem em casa, não fora dela”. Esses tipos de interrupções geralmente são motivados por nossa necessidade de buscar novas informações, reconhecimento social e medo de perder algo importante.
A própria tecnologia pode nos proteger de nós mesmos, desde que haja envolvimento do usuário. Por exemplo, com a adoção de aplicativos digitais de bem-estar. Um estudo concluiu que o sucesso desses aplicativos é encontrado em pessoas com um alto nível de conscientização sobre o papel do celular em suas vidas.
Planejar jejuns digitais intermitentes
É pouco provável que a tecnologia digital nos intoxique, o que ressalta uma limitação do conceito de detox digital. Em vez disso, propomos a estratégia de jejum digital intermitente, em que planejamos períodos específicos de uso consciente da tecnologia.
Pesquisas recentes não estabelecem uma ligação direta entre o tempo de uso e o bem-estar. Mas cada pessoa deve identificar onde está seu limite pessoal de carga de trabalho mental. Assim, ela pode restringir a duração do uso e escolher o momento mais adequado para usar os meios digitais.
Um exemplo para ilustrar a ideia anterior: 15 minutos de uso de tela antes de dormir podem ser mais prejudiciais à nossa saúde geral do que ficar on-line por uma hora à tarde. A luz azul emitida pelos LEDs suprime a produção do hormônio melatonina. Isso altera a regulação dos ritmos circadianos, o estado de alerta e o desempenho cognitivo durante o dia, de acordo com esta análise. Em outras palavras, esses 15 minutos antes de apagar a luz podem fazer com que descansemos menos e isso tem consequências piores em médio prazo do que o tempo de consumo digital à tarde.
Assumir o controle
Em conclusão, a relação entre o uso da tecnologia e o bem-estar depende de muitas variáveis e da interação entre elas. Fatores culturais ou traços de personalidade influenciarão quais estratégias são mais eficazes para cada indivíduo.
O objetivo não é nos desintoxicarmos do digital, mas aprendermos a controlar seu uso para vivermos o melhor de cada mundo. O psicólogo Luis Muiño expressa isso da seguinte forma:
“Saber que estamos escapando temporariamente do mundo real e ter o controle para poder voltar a ele é uma parte fundamental do nosso relacionamento com o mundo das máquinas”.
Fonte: theconversation.com, publicado com autorização do autor. Na redação deste artigo participou Diana López Conesa, professora de Formação Profissional e aluna do Mestrado em Tecnologia Educacional da Universidade de Murcia.
[1] Os dados são de uma pesquisa do site de tecnologia ElectronicsHub, divulgada em abril de 2023.